Luke Cage – Não é bem o herói que queríamos, mas o herói que precisávamos!

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Luke Cage – Não é bem o herói que queríamos, mas o herói que precisávamos!

Por Márcio Jangarélli

Matt e Jessica tinham seu quê a mais. O Homem Sem Medo é um dos maiores e mais conhecidos heróis da Casa das Ideias, que voltou para a marca depois de anos nos campos da Fox e Jessica Jones estava adaptando não apenas uma heroína, uma necessidade da cultura e da indústria, mas também um quadrinho icônico (quando cada traço do “Alias” é tão chocante e visionário quanto a proposta do seriado).

Luke, ainda, já havia sido apresentado como parte integral da primeira temporada de Jones. Qual é o atrativo para a história do Poderoso? Qual é o gancho que Luke Cage lançou para prender o público?

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Momento da Verdade

Em síntese, Luke Cage é sobre poder, respeito e negritude, mas, principalmente, é sobre a construção de um herói realmente heroico, sem a carga dramática escarlate do Demolidor e sem a depressão púrpura de Jessica Jones. E a construção do personagem faz isso sem medo, desviando de qualquer obstáculo do cânone original pseudo-criminoso que pudesse dizer o contrário.

Aqui Luke não é um Herói de Aluguel e não é vigilante – por mais que tentem pintá-lo dessa forma. A história faz o herói de Mike Colter enfrentar de forma brutal seus próprios instintos de ficar fora do conflito. E se alguém duvidava que o herói de pele de aço sangrava, a série quita suas dúvidas. Ele sangra. Ele peca. Mas a construção do ícone heroico se sobressai no final.

A narrativa vai e volta algumas vezes, com o passado de Carl Lucas sendo destrinchado mais de uma vez no meio da trama, o que não é exatamente um mérito, mas também não tanto um defeito. Encontramos Luke meses depois dos eventos em Jessica Jones, agora vivendo no Harlem, tentando seguir em frente. Os primeiros episódios servem como uma construção bem moldada para os heróis e para os vilões da temporada, de uma forma bem Demolidor/Rei do Crime de ser.

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Na Arena

Escutamos nomes conhecidos dos quadrinhos do Poderoso – além de seu próprio codinome, repetido, por brincadeira, várias vezes. Mariah Negra, ou Mariah Dillard, Boca de Algodão, ou Cornell Stokes, Shades, Misty Knight, Scarfe, todos com seu espaço, tempo e formatos bem pavimentados. Nesse primeiro ato, a tensão é entre Stokes e Cage, o que nos leva a crer que ele é o grande mal da trama. Tacada errada.

Talvez, um dos erros da produção tenha sido apresentar e montar personagens tão bons ao mesmo tempo. Cornell Stokes dá o ritmo do começo da temporada. A música, que havia sido colocada como – e é - um dos trunfos da série, vem de Cage, mas principalmente de Stokes. E tudo faz sentido.

A relação entre os dois continua fazendo sentido até depois da primeira volta que o roteiro dá, quando chega à apresentação da transformação super-heróica de Cage – uma das melhores partes da série, diga-se de passagem, com referências e roupas amarelo-canário caindo em todo o canto. O problema é que Stokes se dá tão bem com a trama que, quando chega sua rápida decadência e desfecho, o choque não fica apenas para o público, mas para todo o projeto.

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Vida Longa ao Chefe

Até aqui, Stokes era o Jazz, o Soul e o Rap melódico, enquanto Luke é o Hip-Hop das ruas. Mesmo com o icônico quadro do Notorious B.I.G. e sua coroa em seu escritório, Cornell era suave e clássico, assim como Mariah e Shades, os Charles Bradley’s do Wu-Tang Clan de Cage e Misty Knight. Quando o Kid Cascavel se revela – depois de ter sido mencionado e cozinhado por sete episódios – trazendo mais brutalidade para a galeria de vilões, a base da trama racha um pouco.

Os vilões em Luke Cage debatem sobre poder, cada um a seu modo. Cornell vê o poder nas ruas, Mariah enxerga um poder quase legítimo na política, Shades encontra seu poder se esgueirando entre os maiores e Willis Stryker, a peça “surpresa” e fundamental da segunda parte da temporada, quer uma vingança poderosa e brutal. Entre os três primeiros, os debates sobre controle, respeito e poder são um charme a mais para o tecer da temporada, em especial nos diálogos entre Stokes, Mariah e os flashbacks da Mama Mabel. Shades se colocando entre os dois é pontual. Essa é uma dinâmica orgânica.

Stryker peca quando sua vingança – não tão bem executada quanto sugeria – se sobressai à sua sede pelo poder, destoando do que havia sido pintado até então.

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As Pessoas Fazem o Mundo Girar

Sobre os coadjuvantes, é difícil não gostar do pessoal da barbearia, ainda mais quando os episódios dão atenção e tempo para bate papos calorosos entre os personagens, ditando melhor o tom da coisa. Informal, dia-a-dia, coração do Harlem. O próprio Harlem é um personagem, que faz parte dos protagonistas até certo momento, mas depois fica um pouco no ostracismo até o fim da temporada. Até a ala gangster é gostável.

É através dos coadjuvantes que a trama costura a ideia de respeito e negritude. Claro que as alusões explícitas ao Black Lives Matter e à violência policial contra a população negra são a chave da coisa. Porém, a construção dos diálogos cotidianos na barbearia, a relação entre o crime e a população e a indecisão pública quanto ao heroísmo de Luke são fundamentais para o concreto dos conceitos.

É o passado do Pop, sua honra e popularidade na comunidade, as demonstrações de apoio e de rechaça ao herói do Harlem, o respeito à identidade étnica do bairro, a importância da opinião pública para os poderosos – como o público vai entender, receber, reagir. Isso também é sangue corrente dentro das veias do Harlem da Marvel. Claro, quando não estavam subestimando a inteligência da população – com Kid Cascavel tentando se passar por Luke Cage, por exemplo.

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Manifesto

Diversidade não é bem a palavra certa para descrever a série. Representatividade, talvez. Por mais batido que o conceito esteja, a intenção aqui é na voz; vocalizar a alma do Harlem com um elenco que representa a verdadeira população do bairro. Deixar uma história do público negro, de heróis negros e de um super-herói negro ser contada por quem tem propriedade no assunto.

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Pare e Observe

Agora falando sobre o material fonte, Luke não é o único herói dos quadrinhos transportado para as telas dessa vez. Misty Knight, interpretada por Simone Missick, quando também não tinha sua inteligência subestimada pelo roteiro – o que é incrivelmente descuidado, visto que ela é colocada como extremamente inteligente e calculista durante a série toda (vide as ótimas cenas de reconstituição de casos) – é um dos motores mais quentes da trama.

Misty luta, apanha, perde, vence e se mostra uma das personagens mais centradas do UCM até agora. Se não fossem as ocasionais perdas de inteligência e tato que a personagem sofreu durante seu desenvolvimento, sua estreia estaria do mesmo tamanho que a de Cage.

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É Tudo Sobre Você

E depois de estar em Demolidor e Jessica Jones, Claire Temple, a Enfermeira Noturna, finalmente ganhou mais espaço, sendo uma das heroínas de Luke Cage. Ganhou espaço, mas isso não significa que ele foi bem usado.

Claire surge depois dos eventos da segunda temporada de Demolidor, se mostrando preparada desde sua primeira cena. Isso até criar uma espécie de dependência do Luke sem uma explicação muito boa. Claire sofreu muito desserviço, mas ainda brilhou em vários momentos, mostrando o porquê de ser a escolhida como elo principal entre os heróis.

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Rei de Nova York

Música, negritude, respeito e, claro, ação. Luke Cage é explosiva, imersa em tiros, bombardeios e socos nem um pouco secos, com sangue espirrando por todo lado quando preciso. É literalmente tiro, porrada e bomba. E esse é um dos alvos mais bem acertados da produção.

A ação do Poderoso poderia ficar sem graça, quando é tudo sobre pancadaria, mas, mesclando com as ruas, Luke Cage acertou seus socos da forma certa, entortou os canos das armas premiadas e entregou tanto lutas mais palpáveis para a realidade, como sua invasão aos cofres de Cornell e Mariah, no melhor estilo “cena do corredor” de Demolidor, até coisas extremamente quadrinescas e divertidas, como a luta entre Cage e o Kid Cascavel.

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Levando Para o Pessoal

Nessa de coisas quadrinescas, obviamente a série não escapou das conexões dentro e fora do Universo Netflix. Mas, nesse caso, algumas coisas foram bem decepcionantes. A “Batalha de Nova York” continua sendo o grande gancho cinematográfico dentro da Netflix, com alusões constantes aos Vingadores, mas são as ligações no universo interno que deixaram a desejar. Além de Claire, o Turk está na série e tem um bom papel, que também mostra o desenrolar da história da Reva, começada em Jessica Jones.

O Justiceiro foi chamado diretamente e de uma forma bem legal; O Punho de Ferro também teve seus easter-eggs; O Demolidor foi citado e referenciado em tempos certeiros. Até a Trish fez uma pontinha em um dos episódios da trama. O pecado é contra Jessica Jones, que foi citada apenas como a ex-namorada e a aprimorada de Hell’s Kitchen. Tá certo que, nos quadrinhos, a personagem só entrou na vida do Luke muitos anos depois do herói ser criado, mas o sentimento deixado é como se toda a conexão criada entre os dois fosse restrita à série da moça e só. Faltou sensibilidade e um pouco de vontade nesse caso.

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Amor à Prova de Balas

Luke Cage é o poema de um super-herói urbano realmente heroico porque, no final das contas, ele é alçado ao patamar de ícone. Não por todos, lotado de fraquezas e oposições, porém, ainda assim, respeitando a ideia mais primária de um herói: inspirar esperança.

A poesia bruta de Carl Lucas apresentada pela Netflix é esperançosa dentro e fora das telas, quando trata de temas pesados de forma tão direta que chega a ser sutil. Você só percebe a intenção da série quando ela te atinge, com força, na cara.

Em uma canção sobre um herói à prova de balas do Harlem, nenhum protagonista é branco e nenhum vilão é inalcançável o suficiente, poderoso o suficiente ou rico o suficiente – Stokes estava quebrado com a perda de 7 milhões e Mariah estava sofrendo com as finanças de sua campanha, coisas que não são nem cócegas para alguém das sagas dos Vingadores, por exemplo. Pequenas vozes da realidade dentro dessa trama quadrinesca são o que dão todo o charme especial. Essa não é a melhor produção da Marvel para a TV, mas está a uma infinidade de distância de ser algo mediano ou ruim.

Agora que finalizamos a série, que tal tomar um café?